domingo, 6 de abril de 2008

Varanda

Sentada de tardizinha na varanda o pôr-do-sol quase se afastando do céu, escutava o mar. Tanto fazia se ficava sozinha, desde que não desaparecesse de sua janela. Janelas abertas pra ver o pôr-do-sol e o cabelo dourado.

Logo a frente o mar, cheio de intenções, sorrisos e escuridão profunda. Os vícios eram os mesmos, pôr-do-sol o chá de melancia e aquela janela aberta. Parecia um conto quase de fadas; o cabelo balançava com a brisa, o chá esfriava e a janela permanecia lá sempre aberta, fizesse chuva ou sol, sempre estava lá aberta pro olhar mais atento.

Cruzavam-se pouco, sempre quando levavam o cachorro para passear, se olhavam, mas nunca se falavam, eram vizinhos, estudavam na mesma escola, tinha os mesmo amigos, mas nunca se falavam. Só se olhavam, e olhavam como se amassem talvez se amasse, mas nunca se falavam.
Era inverno, o frio não a amedrontava ficava sempre na varanda a olhar a janela e o mar, o confidente de tudo.

Sempre do outro lado ele a olhava, sabia que sua varanda era amarela com cadeiras vermelhas, tinha flores de todos os tipos, os mais belos tipos, dos mais belos cheiros, da mais bela dama. Ele sempre sorria quando ela brincava com duck, o cachorro, e quando cheira a orquídea mais laranja, para ele a mais bonita, ou quando simplesmente sorria em direção da janela verde florescente.

A vontade de encontrar, só pra estar perto, junto, só de olhar e sentir o cheiro de orquídea, o cheiro que ela carregava no coração. Ela só de pensar em encontrar tremia as pernas, o coração batia tão acelerado que o medo de não estar junto lhe sufocava.
Ele disse: “- tens o que eu sempre sonhei, tens o mais belo.” Sorrindo com a cabeça baixa e as mãos suadas respondeu “- dói não te ver todo dia, não olhar-te pela janela verde florescente.” Vermelha e com as pernas tão bambas ela ficou com medo de se estabacar ali mesmo em seus braços.

Foram para o mar, é lá onde tudo se completa. Ela disse sussurrando em seu ouvido, “te amo”, ele completou, “te quero para sempre”. Beijaram-se como nunca alguém já se beijou se amaram ali mesmo, como nunca ninguém se amou.
Ela acordou, chorou por dias. Ele fora embora para onde seus olhos não o pudessem acompanhar. Ele chorou por não ter mais suas orquídeas, seu amor perfeito. Sempre se viram, nunca se falaram, sempre se amaram.

Mayara Aguiar

Ainda Tem

Porque verdade sem amor é crueldade
Porque ainda tem...
Ainda tem pias injetando os dias
Mulheres dizendo "você não me conhece"
Ainda tem...
Mesmo que precisão seja coisa para quem julga
E não para quem se entrega as esferas
E ainda tem hoje
O dia inteiro ainda tem
E ainda tem a vida toda
O que resta da vida toda
E os restos de todas as vidas
E as novas e dessas as que virão
E as que vão
As tanto, as tão, as nem
Ainda tem
Um enigma não é espantalho
Que também tem
Porque enigma não é espantalho
Que também tem
Mesmo que ninguém saiba decifrá-lo
Ainda temque ninguém saiba decifrá-lo
Ainda tem
Um trem e uma rima
Ainda tem uma menina correndo de vestido rosa contra o fundo verde
Ainda tem Suécia e Grécia e Suíça
E míssil e missa
E fóssil e glossário
Ainda tem aquário e peixe boiando
E o otimismo dos que se privam
E um jardim da saudade e um cemitério do coração
Ainda tem
Ou menos ou mais
E tem você
Que não me tem
Mas eu ainda tem
E tem fuck you e fucsia
E um mundo melhor sem música...
E um quarto vago num prédio abandonado na rua da amargura
Ainda tem
Os outros e ninguém
Tem um monte de caminhos
E a vontade de percorrê-los
E a preguiça de perseguí-los
Na rua em que só se fala socorro alguém grita eu,
Ainda tem o poeta que unificou os títulos
Da confederação brasileira de poesia
Da associação e da super-liga
E que na verdade é um cara simples
Ainda tem arAR-15 e o barco desde o rio
Ainda tem
A falta de sentido da vida
A flexibilidade que tudo exige e que acumula detritos na garganta, ali, onde já não há mais
Paladar e tão somente a matéria pequena, irritadiça e frívola;
E o medo ricocheteando o medo de Ter medo...;
O corpo envelhecendo e seus passados;
E cada virgindade;
E o aprendizado da solidão e sua temperatura única;
E os fantasmas reencarnados em fantasmas em outros ou até em si mesmos;
E o infinito e todas as suas máscaras: máscaras dos livros, dos acontecimentos,
O eterno baile de máscaras de infinitos como espelhos sem vidro: a tinta metálica sobre o ar polido
O eterno baile de máscaras de infinitos como espelhos sem vidro: a tinta metálica sobre o ar polido
Tem cinema, ipanema, novena, novela, vela, nó
Tem re-pe-tir tu-do
OuUmpedaçosó
Mas tem
E não faltará nada
E faltará tudo
Porque ainda tem o mundo
E então um menino sentado no chão pensando ou sonhando
Porque pra um menino sentado no chão
Não tem diferença entre pensar e sonhar
E não faltará método nem protagonista
Porque ainda tem
Um roça escura pra capinar sob a lua
Ainda tem a mulher nua e decidida
Tem feridas sem cura
E cura sem dor
E não faltará
Nem talvez
Porque ainda tem
De novo e outra vez
A glote, a hepiglote, o culote
Sufixos e crucifixos
Pais- nossos e filhos-da-puta
Ainda tem culturas e cacatuas e croatas
E arraiais e arraias
Ainda tem do céu pra cima e da terra pra baixo
Ainda tem tanta coisa
Mas tanta coisa
Que também não tem então
E daí tem de novo
E pára e volta
E pára pra sempre e não volta nunca mais
E é incessante
Porque ainda tem
Sempre tem
Ainda

do poeta, ator, apresentador, homem, e poeta poeta Michel Melamed.

Mayara Aguiar